“O animal satisfeito dorme”
O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Por trás dessa aparente obviedade está um dos mais fundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que
a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.
O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Por trás dessa aparente obviedade está um dos mais fundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que
a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.
A advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui,
encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a continuidade, para o
prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento. A satisfação acalma,
limita, amortece.
Por isso, quando alguém diz “fiquei muito satisfeito com você”
ou “estou muito satisfeita com teu trabalho”, é assustador. O que se quer dizer
com isso? Que nada mais de mim se deseja? Que o ponto atual é meu limite e,
portanto, minha possibilidade? Que de mim nada mais além se pode esperar? Que
está bom como está? Assim seria apavorante; passaria a idéia de que desse jeito
já basta. Ora, o agradável é quando alguém diz: “teu trabalho (ou carinho, ou
comida, ou aula, ou texto, ou música etc.) é bom, fiquei muito insatisfeito e,
portanto, quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas.
Um bom filme não é exatamente aquele que, quando termina,
ficamos insatisfeitos, parados, olhando, quietos, para a tela, enquanto passam
os letreiros, desejando que não cesse? Um bom livro não é aquele que, quando
encerramos a leitura, o deixamos um pouco apoiado no colo, absortos e
distantes, pensando que não poderia terminar? Uma boa festa, um bom jogo, um
bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos que se prolongue?
Com a vida de cada um e de cada uma também tem de ser assim; afinal de contas,
não nascemos prontos e acabados. Ainda bem, pois estar satisfeito consigo mesmo
é considerar-se terminado e constrangido ao possível da condição do momento.
Quando crianças (só as crianças?), muitas vezes, diante da
tensão provocada por algum desafio que exigia esforço (estudar,
treinar,EMAGRECER etc.) ficávamos preocupados e irritados, sonhando e pensando:
por que a gente já não nasce pronto, sabendo todas as coisas? Bela e ingênua
perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo e nem prontos; o ser que nasce
sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de insatisfação e
precisamos ter nisso alguma dose de ambição; todavia, ambição é diferente de
ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto que o ganancioso
quer só para si próprio.
Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e,
nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais
refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais
impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não
saberíamos enfrentar.
Diante dessa realidade, é absurdo acreditar na idéia de que uma
pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém quanto mais vivesse
mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando…
Isso não ocorre com gente, e sim com fogão, sapato, geladeira. Gente
não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não-pronta, e vai se fazendo.
Eu, no ano que estamos, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um
pouco ampliada); o mais velho de mim (se é o tempo a medida) está no meu
passado e não no presente.
Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o
mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o
escuro é claro”…
Excerto do livro “Não nascemos prontos! – provocações
filosóficas”. De Mário
Sérgio Cortella
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